Grafites do Trágico
ao Junito Brandão – embaixador de Apolo
σ. Junito Brandão – πρεσβευτή του Απόλλωνα
(segue o texto original que enviamos ao livro em homenagem ao saudoso amigo,
cuja diagramação final não respeitou nossa versão original)
Marcos do ensaio de Peter Szondi: “Desde Aristóteles existe
uma poética da tragédia; só a partir de Schelling, uma
filosofia do trágico”. Pequena história do Ocidente. O Logos
a defender-se do caos.
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Domínios do divino: plurais e inconciliáveis.
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A língua impronunciável dos celestes. Difícil compreendê-la,
ambígua e fugidia.
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A equivocidade é ínsita aos deuses. Ou tão-somente incerta
a escuta dos mortais?
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O rei Creso, da Lídia, e o Oráculo de Delfos. A sua leitura
cria uma ferida. O soberano ilustra uma falácia. A
anfibologia o devastou. Perdeu o reino para sempre. E
habita desde então os manuais de lógica. Destronado,
ganhou eternidade.
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A tragédia como ideal de um todo vivo, segundo Hölderlin
(das Ideal eines lebendigen Ganzen), altamente concentrada
e isenta de acidentes, como a mais rigorosa das formas
poéticas.
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Como resumir o poema “Patmos”? Fingo simul credoque.
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Não há outra saída: o sofrimento ensina: παθείν, μαθείν.
Mas até onde, em que medida?
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Schelling: a mitologia não é alegórica mas tautegórica. Os
deuses nada representam além de si. Mas qual a proporção
em Frínico e Eurípedes?
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Édipo. Teu nome, teu destino. O trágico pendor
etimológico.
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Vernant e o enigma da esfinge: 2, 3, 4: não 4,2,3. E,
contudo, o errado é certo. O enigma espelha o indagado.
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Coéforas, 899. “Pílades, que devo fazer? Poupar minha
mãe? ” (Πυλάδη, τί δράσω; μητέρ᾿ αἰδεσθῶ κτανεῖν;). A
lenta gestação do fantasma de Hamlet.
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Entre Hamlet e Orestes, Pirandello: “se no momento
culminante, quando a marionete que encarna Orestes está
para vingar a morte do pai sobre Egisto e a mãe, ocorresse
um rasgo no céu do teatrinho o que aconteceria? (...) Orestes
ficaria terrivelmente impactado com aquele buraco (...)
Toda a diferença entre a tragédia antiga e a moderna
consiste nisso: um buraco no céu”.
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A tragédia e a cultura judaico-cristã. As aporias, debaixo do
tapete. O mistério do mal na salvação. Diabolus in musica.
Por que se afasta a polaridade? Na contramão, o ensaio de
Kovadloff: O irremediável, Moisés e o espírito trágico do
judaísmo. A μεταβολή de Moisés e a sentença de Deus,
inapelável, ao impedir-lhe a Terra Prometida.
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A complexa άμαρτία: a exclusão de Moisés e o sacrifício de
Isaac. O rei Cadmo aponta o excesso de Dionísio, nas
Bacantes. Penteu errou. Já quem atravessou o Mar
Vermelho...
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Se o trágico tem fome de aporias, o logos se enamora de
euporias.
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Segundo Jaspers, o trágico não habita a transcendência, mas
acontece em sua temporal aparição.
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Não emprestar caráter absoluto ao trágico. Medir a espécie
de transcendência que o atravessa.
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Nietzsche: “munida com o chicote dos silogismos, a
dialética otimista expulsa a música da tragédia: destrói a
própria essência da tragédia, que tem de ser interpretada
como manifestação e objetivação de estados dionisíacos,
como simbolização visível da música como mundo onírico,
de embriaguez dionisíaca”.
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Ou, ainda, no sonho de Sócrates e a música: “Haverá talvez
um reino da sabedoria que não admita o lógico? Quem sabe
se a arte é um complemento ou um suplemento necessário
da ciência? ”
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Em Guadalajara. Hécuba ergue os braços para o céu. A
evocação da transcendência. Como esquecer o céu de
Pirandello?
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A cesura da Antígona genialmente recuperada por
Hölderlin. O movimento interno em duas partes. E a
mudança no coração (Herzenänderung).
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Sobre o tempo do trágico, em Beauffret, quando o deus não
é mais um imenso “horloge de lumière qui mesure ce
qu’elle manifeste et manifeste ce qu’elle mesure.”
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Mas os ponteiros digitais prosseguem. Cito a Canção do
Destino de Hipérion. Os deuses antigos não cessam de nascer.