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DIREITOS LINGUÍSTICOS

A agenda intercultural da América Latina, na era do pós-regionalismo, precisa promover dinâmicas de descentramento, auscultar as – hoje justamente famosas –  periferias linguísticas ou  existenciais. Não como  favor, mas como demanda legítima de inclusão, no centro da democracia plena, que apresse outras formas de discriminação positiva.

Trata-se de uma agenda multilíngue, que se incline à cultura do encontro e da hospitalidade. Urge delinear as partes em diálogo da América Latina, com  interlocutores comprometidos nos projetos multilaterais, que não se resumam a campos estritamente econômicos, a nuvens erráticas de capital. Projetos capazes de recusar imanências corrosivas, provocadas pela teologia de mercado, que revalidem a chantagem do Mesmo, através de estratégias tristemente homogêneas, como reza a apologética do sistema. Esta, que produz centenas de milhares de consumidores precários, no lugar de cidadãos, no lugar de sujeitos de direito, criando bolsões de intolerância e desagregação.

        

Deve-se condenar com clareza tal hegemonia, linguística e ideológica, de centralidade narcísica, valendo-se de uma gramática única, desligada da beleza do encontro, ao demonizar tudo que é híbrido. A promoção da cultura da paz e da diversidade precisa fazer frente a uma espécie de anti-esperanto, em favor das línguas plurais, que desatendem aos interesses de uma fábrica de padrões globais, quando desaceleram as nuvens de capitais. A América Latina precisa horizontalizar as pedras de Babel, aquelas mesmas pedras imateriais, que Antônio Vieira apontou ao longo do Amazonas, Rio-Babel, ecumênico e profundo, que dialoga com seus afluentes e tributários, como um poema de Khliebnikov, rio que tudo acolhe em seu percurso desafiador. Fluxo que não dissolve a felix culpa das tantas línguas que nos constituem, consideradas hoje como fogo prometeico, dom celeste, unidade inacabada.

Trata-se da defesa dos direitos linguísticos do continente. Quase trezentas, as línguas remanescentes, praticadas no Brasil, em busca de território, flutuante, ainda, ou mal demarcado, onde cultura e natureza produzam um círculo virtuoso de biossegurança. Não há outra forma de equacionar a relação língua e terra, tão imbricadas se mostram, senão dentro da cultura da hospitalidade. Se não dispomos de uma gramática descritiva da língua do paraíso, intuímos suas virtudes poéticas, no plano das essências, na primeira aurora do mundo, pondo-se em marcha a nomeação adâmica, quando o curso do rio e das estrelas formavam um só destino. Essa língua impensável requer uma projeção utópica, mediante poetas e tradutores que digam adeus às névoas do Uno e abracem vigorosamente o Múltiplo, vibrátil por definição, marcado pela beleza do Rosto. Em Torres de Babel, afirma Derrida que

graças à tradução, a essa suplementariedade linguística pela qual uma língua dá à outra o que lhe falta, este cruzamento das línguas assegura o ‘santo crescimento das línguas’ até o termo messiânico da história. Tudo isso se anuncia no processo tradutor, através da ‘eterna sobrevida das obras’ ou ‘o renascimento infinito das línguas’. Essa perpétua revivescência, essa regeneração constante pela tradução, é menos uma revelação, a revelação ela mesma, que uma anunciação, uma aliança e uma promessa.

 

Torres de pedra, e sobretudo imateriais, como o Ayvu rapyta, a teogonia ditada pelos grandes metafísicos das Américas, que são os povos guaranis, na bela edição de Bartomeu Meliá. O plurilinguismo nas Américas deve ser reativo à ontologia do Mesmo, que se espalha em escala planetária, nas imposições gasosas da economia global. O célebre ensaio de Erich Auerbach, “Filologia da Weltliteratur”, permanece atual, ao destacar a insolvência da diversidade, que se faz maior, desde as ruínas do Pós-Guerra:

 

é chegada a hora de perguntar que significado possui a palavra Weltliteratur no sentido proposto por Goethe. Nosso planeta, campo da Weltliteratur, está se tornado menor e perdendo a sua diversidade (...) a suposição de que a Weltliteratur é a felix culpa: da divisão da humanidade em muitas culturas. Hoje entretanto a vida humana está se tornando uniforme. O processo de uniformidade (…) está minando todas as tradições individuais.

 

       A América Latina precisar responder ao ensaio de Auerbach com a inteligência da coruja de Minerva, de olhos acesos, a partir de políticas que promovam as línguas fundamentais. O bilinguismo no Paraguai, no Peru e na Bolívia, em paralelo com as formas religiosas combinadas, parecem reagir ao evangelismo global (como o entendem Peter Berger e Samuel Huntignton, em Muitas globalizações) e aos circuitos dos sistemas financeiros. Representam focos de insurgência ou inflexão, que se afirmam justamente na periferia, nas margens do Rio-Babel, das democracias intransitivas ou intransigentes. As virtudes do bilinguismo promovem uma ética entre conjuntos de fricção (a língua um e a dois), conjuntos incompletos, bem entendido, que se movem instados por uma espécie de completude incompleta, ou pela tradução entre dois conjuntos, abrindo a possibilidade de uma terceira via, de um terceiro rosto, de que ambos os conjuntos saem iluminados. Babel invertida, com fios de ouro, com uma etimologia que olha escandalosamente para o futuro.

O trecho do livro Tyre’ỹ rape/Camino del huérfano, da escritora paraguaia Susy Delgado, em guarani e espanhol, é eloquente:

He reunido en este libro aquellos [poemas] que nacieron en guaraní y aquellos que pidieron el papel en castellano... Como auctora, reconozco en este libro cómo se van mezclando y hablando juntas mis dos lenguas otros acentos de este camino interminable, que cada día se parece más a una Babel desértica.

Entre a nomeação adâmica, como projeto, e as políticas regionais, ajoelhadas diante das demandas globais,  entre torre e deserto, Susy torna a acender as solidões de sua pátria não de todo perdida,  a sonhar com  a "Terra sem Males":

 

Camino

descamino

despatria

deslugar

desorilla

descuerpo

deshondura

desnorte

desencuentro

 

        A hospitalidade surge mediante a negação e a incompletude do caminho inverso para Babel, que se percorre entre nação e desnação, para que enfim se possa indagar, com temperatura elevada, "¿dónde estabas/ dónde estás/ dónde estarás? Tierra sin Mal?”.  Um rosto velado (que pede a criação de novo percurso, entre ascensão e queda, através de uma antipoesia) deixa-se entrever com o poeta chileno, Nicanor Parra, do qual retiro de Poemas para combater a calvície os seguintes versos:

Consumismo

derroche

despilfarro

serpiente que se traga su propia cola

 

Buenas noticias:

La tierra

de años

Somos nosotros los que desaparecemos

 

EL MUNDO ACTUAL?

EL inMUNDO ACTUAL!

Para combater a gravidade dos compromissos, ideológicos ou, mais detidamente capilares, assim como dos circuitos de exclusão, deparamo-nos também com o mexicano, Natalio Hernández que se dá conta “de que em mi lengua había una mina de tesoros, como pasa en cualquier idioma. Y esos tesoros poco a poco voy encontrando, guardados en el corazón de la lengua náhuatl”. Essa mina, de que seus falantes são depositários, exige uma subida à profundidade, nesta chave de inversões, como nos diz, em língua mapudungun, o poeta chileno Elicura Chihuailaf, que retransmito em espanhol:

 

Alma labrada por naturaleza

heme aquí, lentamente subiendo

hacia mi propia hondura.

 

Subir às profundezas – e não descer! –,é um topos insistente e resistente, de ordem expressiva, senão metafísica, tal como vemos nas “Coplas de Cochabamba”, traduzidas do quéchua por Jesús Lara:

 

¿ Que nube es aquella nube que engrenecida se acerca ?

Será el llanto de mi madreque viene trocado de lluvia.

 

As lágrimas que irrigam Pacha Mama, a Terra-Mãe, a fonte de todos os rostos e de todas as línguas, ctônicas e descentradas, são lágrimas de parturiente, com novos desenhos, caminhos, potências. Assim também se volta Ernesto Cardenal, quando indaga sobre a possibilidade de

 

restablecer las carreteras rotas
de Sudamérica
hacia los Cuatro Horizontes
con sus antiguos correos.

 

Trata-se de uma ampla comunicação, dos velhos caminhos indígenas e os que se redesenham hoje, desde a já mencionada tensão entre língua e geografia. Não como adesão ao passado, mas como alongamento horizontal de uma Torre, nova, e felizmente interminável. Os direitos linguísticos representam um passo urgente e essencial, porque suspendem os crimes de lesa-memória, dentro e fora das Américas, sem perder o fio-terra da região com o global, aqueles “antigos correos”, pensados do ponto de vista de uma grande geografia expansiva, no horizonte cosmológico, onde se inscreve o vasto Poema cósmico do poeta nicaraguense. Assim, dentro desse programa sempre por reiniciar, volto ao ensaio de    Auerbach, quando afirma que a casa da filologia é a Terra. Eis um gesto propício à defesa multilíngue de nosso continente, entre a filologia do planeta e a sintaxe da Diversidade. Evoco o poema “o Livro Único” (единая книга), de Velimir Khliébnikov, com uma síntese da Terra, desde as grandes narrativas:

Vi que os negros Vedas,

o  Evangelho e o Alcorão

e os livros dos mongóis,

em tábuas de seda,

com a poeira da estepe

...........

Lerás muito em breve

estas lições das leis divinas,

estas cadeias de montanhas, estes mares dilatados

este único livro!

Em suas páginas salta a baleia

E a águia real, dobrando o canto da página

Senta nas ondas, nos seios dos mares

e descansa no leito da águia.

 

O livro único de Khlébnikov, enquanto houver tempo, é o manancial da diferença, um repertório de extensão, Livro que hoje não vai muito além do sumário. Embora conte com muitos autores: obra coletiva, silenciosa, republicana, de uma democracia planetária em revisão. 

         Uma Terra sem males?      Yvy Mare’y!

 

Fonte: Carteiro Imaterial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.

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