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LÍNGUA PORTUGUESA E CULTURA DA PAZ

 

 

Do sonho dos poetas e escritores lusitanos vivi anos a fio de minha juventude. Protegido pelos fortes dos séculos XVI e XVII que margeiam a Guanabara, entre o Rio e Niterói, e velam o tesouro da língua que me precede e arrebata. Tal como o farol intermitente da fortaleza de Santa Cruz, quando fixo a entrada noturna da baía. Origem de uma língua que tem o mar como destino e comunhão.  Minha janela alcança o velho mar que nos une.

 

Nenhum corsário, por incógnito e sub-reptício, será capaz de arrancar de nosso meio a intensidade do til e da nasalização e a plácida melodia das vogais manuelinas, vibráteis, cuja precisa escansão é um tributo ao erário de um português fiel a seu passado. Nossa língua não perdeu seu DNA, antes amoldou-se, onívora, a um destino polifônico.

 

Se adentrarmos os subúrbios da Leopoldina, a voz do povo reveste-se da pátina quinhentista, para além da toponímia, nas antigas flexões e prefixos verbais, boa parte de quanto surde nos cantos de Os lusíadas, pronunciados pela gente simples, as levas migratórias das ilhas e continentes que foram outrora de el-rei e dos impérios da África.

 

Meus ouvidos de menino seguiam essas ondulações, fluxo e refluxo, passado e futuro, aquela mesma síntese com a qual Machado de Assis inventou uma expressão toda sua, forjada num eterno presente, rigoroso e salutar.

 

Dei início a uma navegação de cabotagem, sem agulhas de marear, na imensidão linguística do português, às vezes, em horizonte trágico-marítimo, armado de sonho claro e de esperança vã, ao renegar o nec plus ultra de minhas colunas de Hércules, inspiradas desde a escola de Sagres ao tempo extinto da Ulisseia, de Gabriel Pereira Castro. 

 

Em meus albores, tomei o partido de Vieira na carta ao Bispo do Japão, porque um dia dom João IV há de ressuscitar, e a cujo encalço lançamo-nos há séculos para, quem sabe, atravessarmos, um dia, o atalho do espaço-tempo, a famosa ponte de Einstein-Rosen. Teci infinitas conversações com Cesário e Florbela, desde a rapariga de “um bairro moderno” a seu anverso feminino e àquele cabo tormentório, em cujas águas se ocultou.

 

Tal como Sá-Carneiro, ando perdido entre o que sou e uma intangível alteridade, a salvo, tão-somente, porque unido aos heterônimos de Pessoa, em cujas formas se dissolvem meus cuidados.

 

Quantas luas contei nas águas, densas e bravias, plácidas e altivas, de Camões, antes de vislumbrar a esplendorosa Vênus desnuda. Morro-me quando procuro Antero, entre nuvens e relógios, ao longo de um inacabado por de sol e, com igual fervor, afundo os remos na noite escura de Al Berto, furiosa e quebradiça, tamanha a sua beleza imponderável.

 

Não me afasto um centímetro da matemática de Gedeão, pois a ideia-número guarda uma poética intrínseca.

 

E vou cercado pelo magma de Herberto, cuja atividade vulcânica não cessa na minha alma sísmica, lapili de palavra e soledade, ritmado o esconjuro intermitente à hora mortis.

 

Embora a lista se apresente inacabada, invoco a latência de um emblema: dom Sebastião, perdido nas lonjuras de um império imaterial.

 

Procuro a desejada parte oriental, mais imprecisa e ecumênica, através de Mensagem e Tabacaria, frutos sazonados de uma abrangência fundada nas coisas mais diáfanas e sutis.

 

Como não lembrar de José Régio, “naquela alvorada de névoa”,  prefácio do rosto de el-rei: 

 

“Numa Ilha ignota é que ele agora vivia, o Encoberto e o Desejado de sempre. E um dia viria, numa alvorada de névoa, resgatar o seu Reino da pobreza e da vergonha [...] o capitão de Deus, o Rei da esperança maior que os desesperos, o vencedor da sua própria imperfeição mortal...”

 

Quanto seria longo e inútil confessar a adesão sebástica de que sou vítima, os encobertos que busquei, nos labirintos de Vieira e nas águas conceituais de Pessoa, nos excessos de Sampaio Bruno e no feixes de sentido em Teixeira de Pascoaes. Cada qual inclinado ou arrastado a um multiverso de futuro incompossível, tão variegados se mostram entre si as leituras dissonantes de um rei inacabado. 

 

A inscrição do futuro dá-se através do legado de um espectro flutuante das línguas portuguesas, a imagem sebástica,  aqui e agora, pois a volta ao passado é apenas uma hipótese da teoria de Gödel, restrita a não poucos impasses.

 

Em outras palavras, não será possível alcançar, através da máquina do tempo, o rosto de dom Sebastião. Somente nas malhas da língua viva, nos poros da pele, nas muitas cores e diversas latitudes, na forma de grafá-las ou traduzi-las é onde daremos início a uma  nova epistemologia: na interface com outras línguas, no tempo agora, no vislumbre da aura e de sua consequente epifania.

 

Língua que une e separa, integra e desintegra, partilhada por avaros e pródigos. Língua indomável, nas dobras e rizomas da interlíngua, no espaço entre as palavras, vogais e consoantes. Somente aqui a língua portuguesa assume toda a sua vocação especular, como na hóstia do padre Manuel Bernardes. Brilha no fragmento o sinal de uma totalidade interrompida, sem exclusão do sujeito, de seu irredutível espaço, de sua corrente identidade. Toda a  pertença, todo o acúmulo de sonhos que o atravessa, no rumorejar do tempo.

 

Lembro-me do ensaio de Mircea Eliade, Camões e Eminescu, no elogio das línguas extremas da latinidade, o romeno e o português, línguas de fronteira, capazes de enorme assimilação de mundo e espaço-tempo, um romaneio de palavras, para torná-las sui juris.

 

Línguas que se fazem notar pela beleza, Vênus desnuda, cujas extremidades se tocam no corpo de um latim que mal se reformou, entre o Atlântico e o Mar Negro, à deriva de demandas prístinas e atuais, como um graal inquieto e preservado. 

 

Língua sem barreiras, sem medo de arrostar novas comunidades, formas de diálogo que dissolvam fantasmas ideológicos, em decomposição.

    

Foi Eduardo Lourenço quem corajosamente definiu, em A nau de Ícaro, o movimento pendular que une e divide nossos países. O Brasil não cometeu devidamente o parricídio, como se filho de si próprio se tornasse, sem forças de recuperar os laços fundadores. E Portugal não se libertou de uma saudade projecional do império, preso no labirinto de suspiros e saudades, nos braços do Minotauro, sem o fio de Ariadne. Diz Eduardo Lourenço, em outra parte, sobre uma possível lusodifusão:

 

“é no espaço cultural, não só empírico mas intrinsecamente plural, que os novos imaginários definem que um qualquer sonho de comunidade e proximidade se cumprirá ou não [...] É bom estar na casa dos outros como na nossa. É melhor que os outros estejam em nossa casa como na sua. Mas isso nem se pede, nem se sugere. Esperemos que nos encontremos em qualquer coisa como a antiga casa miticamente comum por ser de todos e de ninguém”.

 

Essa casa miticamente comum repousa na dinâmica de um projeto em construção, de todos e de ninguém, como o Homero da Grécia, reclamado por todas as cidades, nascido em todas as épocas.  Assim, pois, a casa comum da lusotopia, multidiversa e plurimodal, dispõe de um volume generoso de tempo, onde nos assentamos, respeitosos, sem esconder a síntese de que somos filhos e protagonistas, com as línguas ao sul do Atlântico, das Áfricas e das Índias.   

 

Leio o capítulo sexto da História do futuro e  substituo a presença de Portugal, sem a apagar, fixando-me no rizoma de proporções planetárias, a própria lusocromia:

 

Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do que Poro tinha cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, o Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o Sínico, tão temeroso por seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram? Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas, que ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentes feras e belicosas não domaram? Que cidades e castelos fortes na terra? Que armadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante, com mais pertinácia que com instancia?”

 

Não se trata de um discurso de guerra, mas de seu contrário, uma conquista de mão dupla, sem vencedores ou perdedores. Metáfora de paz arrevesada.

 

Em tamanha diversidade, havemos de recuperar um dia o rosto de dom Sebastião. Como quem reúne os 14 pedaços de Osíris, ao longo do Nilo, para recompor sua figura. Ou, ainda, os 201 pedaços de Exu, desde a cultura iorubá, como lembrou recentemente o rei de Ifé, em visita ao Brasil, a fim de apaziguar a alma dos escravos mortos. Ou talvez melhor: quando, no BhagavadgÄ«tā, toda a beleza de Káč›áčŁáč‡a se desvela, em seus olhos, como o Sol e a Lua conjugados, os braços infinitos, sob intensa “massa de esplendor”, guardião do devir, fruto de uma insólita adição épica.

 

Assim também a língua portuguesa, como os rostos e os corpos de Káč›áčŁáč‡a, centrada e descentrada, ao longo de um núcleo semântico centrado e descontínuo. 

​

Eis a latência infindável de dom Sebastião, mártir redivivo, na etimologia do testemunho, de um tesouro equívoco, a desenhar a cultura da paz, das areias do deserto ao delta do Ganges, ao longo das “colaterais constantes rochas” do Amazonas, do Tejo e do Minho, aos rios e oceanos de um império urdido em metáfora e saudade.

 

Também aqui Sebastião: a espera ativa, de língua e liberdade, onde se consumou boa parte de uma persona flutuante ou sediciosa, como em Canudos, visto por Euclides da Cunha, em Pedra Bonita fixada por Ariano Suassuna, nas rútilas distâncias de Goa e de Macau, em Timor Leste, nas ilhas de Cabo Verde afortunadas.

 

De todas as partes, a casa comum, cresce na urdidura delicada de que somos feitos, e emancipados no futuro, sem perder a origem e as dores do parto.

 

Um Sebastião travestido de língua, um rei ambíguo, transfigurado. “Última flor do Lácio”, jardim afro-brasileiro, onde cabem todas as Índias, também uma jangada de pedra.

 

Não tenho dúvidas: a língua portuguesa é o semblante do Encoberto e Desejado, onde todos se reconhecem numa densa e luminosa alteridade especular.

 

 

Texto publicado originalmente no livro Cultura da paz. Editora: Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2020.

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